Sim, um professor vale mais do que o Neymar. E sem investir neles o Brasil continuará semi-analfabeto. Mas a solução só virá mesmo com algo bem maior: uma revolução nos métodos de ensino
por André Gravatá
"Ao entrar na escola pública, encontrei alunos que não conseguiam decifrar palavras no fim do ensino fundamental. Como eles passam tantos anos na escola e não aprendem o mínimo?", diz Caroline da Silva, professora de escola municipal de São Paulo. Infelizmente, a situação que Caroline encontrou na sala de aula é uma realidade comum: quase um terço dos brasileiros é incapaz de compreender esta frase. Quase 10% da população é incapaz de escrever o próprio nome, e outros 20% são os chamados "analfabetos funcionais" - eufemismo do IBGE para aquelas pessoas que reconhecem as palavras mas não conseguem interpretar um texto minimamente.
Existem
várias explicações para essa (falta de) educação ligadas à falta de
investimento. Escolas com péssima infra-estrutura, salas de aula lotadas,
professores mal pagos, mal preparados e desmotivados. Mas a verdade é que a
escola também se distanciou da realidade em que vivemos. Ela ainda reproduz um
modelo baseado na decoreba de assuntos desconectados da prática e não consegue
estimular os alunos a aprenderem nem sequer o tal "mínimo".
Em
pleno século 21, com tanta informação disponível, esse formato de ensino que
não valoriza a criatividade e a capacidade dos alunos de conectar novos
conhecimentos está em crise. "A escola não muda a sociedade, mas muda com
a sociedade", diz o educador português José Pacheco. Criador de um modelo
de ensino de referência no seu país, ele hoje trabalha no Brasil como mentor do
Projeto Âncora, escola que vira o ensino tradicional pelo avesso.
"Defendo
um salário digno para os professores brasileiros, mas isso sozinho não vai
resolver os problemas da educação", diz Pacheco. "Eles podem ganhar
dez vezes mais, mas não vai adiantar se continuarem a repetir as práticas de
hoje. A solução é mudar a cultura da escola."
O
Projeto Âncora faz sua parte. A escola em Cotia (SP) atende cerca de 300
estudantes de baixa renda de 3 a
15 anos com uma proposta baseada na autonomia do aluno. Para efeitos
burocráticos, eles estão no ensino infantil ou no fundamental. Mas, na prática,
não há séries ou disciplinas separadas. Os alunos desenvolvem projetos sobre
assuntos deu seu próprio interesse, escolhidos por eles mesmos (no último
semestre, os temas foram de escravidão a kung fu). O conhecimento é assimilado
de forma integrada, tudo ao mesmo tempo. Os alunos são incentivados a encontrar
soluções em equipe, baseados em experiências reais, exatamente como vão
precisar fazer na vida fora da escola. Ao estimular a solução de problemas em
conjunto, a ideia é favorecer um clima de cooperação, em vez de competição. E o
trabalho coletivo vai além dos projetos em grupo. A cada quinzena, os alunos fazem
assembleias com os professores para debater rotinas e regras de convivência.
"É sempre um trabalho por consenso", diz o professor Victor Lacerda.
Dar voz ativa aos alunos faz com que eles se envolvam mais com a aprendizagem.
Essa
subversão da grade curricular não é exclusividade do Âncora, mas uma resposta
comum de escolas que inovam para resolver a falta de conexão entre disciplinas.
Na Índia, a Riverside School também tem essa dinâmica. Quando o tema foi
chocolate, por exemplo, as crianças pesquisaram, fabricaram e venderam o dito
cujo. Durante o processo, aprenderam ao mesmo tempo história, biologia, química
e matemática. O aprendizado já vem empacotado com sua aplicação. De quebra, o
trabalho é uma experiência social, em que eles desenvolvem conhecimentos úteis
normalmente negligenciados no ensino convencional, como relações pessoais e
culinária.
O
uso de estratégias para engajar o aluno no processo de aprendizagem é uma das
principais tônicas dessa reinvenção do ensino. Na escola pública Quest to
Learn, de Nova York, o uso de jogos está na essência do ensino. Lá, quase tudo
envolve "gamificação" - uso da dinâmica de jogos para abordar temas
do cotidiano. Os alunos aprendem a resolver equações, por exemplo, com jogos de
mesa. Ou então fazem engenhocas como as destas páginas, que substituem as
tradicionais provas escritas de fim de bimestre. O objetivo é acompanhar o
desenvolvimento da capacidade dos alunos para trabalhar em grupo e solucionar
problemas reais. A busca por soluções para cada parte do invento extrapola os
limites da escola. Os estudantes buscam ideias em qualquer lugar. Por trás
desta gincana, está algo maior: fazer do mundo inteiro um espaço de
aprendizagem. Os alunos são incentivados a exercitar a busca por conhecimento
onde quer que estejam, não apenas na sala de aula.
A
estrutura dessas instituições, como é de se esperar, também é diferente. Na
Quest to Learn, os alunos se espalham por salas com cadeiras em grupo. Há livros,
pincéis e tintas à disposição, e as paredes são cobertas por desenhos.
"Quando descobri a escola, senti na hora que queria estudar lá", diz
Rocco Rose, 14 anos.
O professor facilitador
O professor facilitador
Nesse
ambiente em que os alunos parecem mandar na escola, o professor desce do
pedestal. A descentralização da autoridade e a valorização da liberdade do
aluno são marcas centrais dessas escolas inovadoras. "Aquele jeito
hierárquico de lidar com a educação é bastante ultrapassado e ineficaz para o
mundo dinâmico em que vivemos hoje", diz Victor Lacerda, educador do
Projeto Âncora. Na construção das engenhocas da Quest to Learn, por exemplo, os
professores não ensinam a montar nada. Em vez disso, eles facilitam o processo indicando
caminhos e dando pistas sobre onde descobrir o que precisam para que o projeto
funcione. "A maneira mais efetiva de ensinar é deixar os estudantes no
controle da sua própria aprendizagem", afirma Elisa Aragon, diretora da
Quest to Learn.
Se
o professor perde sua condição de "proprietário" de um conhecimento
que vai apenas entregar, a figura dos alunos obcecados em decorar conteúdos em
busca das melhores notas se torna algo raro. Nessa proposta de educação, em um
mundo onde a Wikipedia pode ser acessada do celular, o cdf - e sua quantidade
exorbitante de conhecimento na ponta da língua - deve entrar em extinção. A
ignorância, essa sim, tem sido cada vez mais valorizada como um instrumento
importante de aprendizagem. Nos EUA, Stuart Firestein, professor de biologia e
pesquisador da Universidade Columbia, fez sucesso com o livro Ignorance: How it
Drives Science ("Ignorância: como ela guia a ciência", sem edição no
Brasil). "O propósito de conhecer um monte de coisas não é saber um monte
de coisas, mas ser capaz de elaborar questões profundas e interessantes",
escreve. É exatamente essa grande interrogação que os professores facilitadores
querem manter acesa na mente dos alunos. A ideia é incentivar constantemente a
sua curiosidade e fazer do aprendizado mais um instrumento que um fim.
Certo,
tudo isso pode ser muito legal, mas difícil de implantar no rígido sistema
educacional brasileiro, não é? Nem tanto. "A homogeneidade não é
obrigatória para as escolas - e é a pior palavra que podemos usar para resumir
um espaço de aprendizagem", diz Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação
Básica do Ministério da Educação. Ela lembra que a Lei de Diretrizes e Bases de
1996, que rege a educação nacional, prevê a autonomia das escolas na elaboração
do seu projeto pedagógico, entre outras aberturas. Ou seja, o Brasil já tem uma
porta aberta para a experimentação. Tanto que já existem escolas do tipo no
país. O que falta, como acredita José Pacheco, é conhecer, valorizar e divulgar
essas novas práticas.
E
às vezes nem é preciso criar uma nova escola do zero. Pequenas atitudes dos
professores que se mobilizam dentro dos colégios tradicionais já produzem
impactos significativos. É o caso de Caroline da Silva, aquela que, no começo
desta matéria, se impressionou com o analfabetismo de seus alunos no fim do
ensino fundamental. A professora organizou um pequeno festival na escola, com
apresentações de música e dança, oficinas de origami e mágica, entre outras
atividades. Organizando tudo, descobriu que havia um piano abandonado em uma
sala fechada da escola. "Procuramos a chave e vimos que o instrumento não
estava quebrado, apenas desafinado", diz. Com a ajuda de uma aluna que
sabia tocar, o piano virou uma grande atração do evento. Com o pouco que tinha,
ela incentivou outra prática valorizada nas escolas inovadoras: a de aprender
com o corpo inteiro, não apenas com a cabeça.
A
iniciativa mostra que atitudes simples e baratas podem ensaiar uma nova melodia
em nossas desafinadas escolas públicas. Valorizar essas atitudes pode ser a chave
para reverter um triste indicador de nossa educação. Um em cada quatro alunos
que entram no ensino fundamental abandona os estudos pela metade. Entre os 100
países com maior índice de desenvolvimento humano, o Brasil tem o terceiro
maior índice de evasão escolar. Aumentar o salário dos educadores, essas
pessoas com o potencial de operar pequenas revoluções e mudar nosssa realidade,
seria justo. Mas reinventar a escola pode não depender tanto assim de dinheiro,
e sim de mais disposição para pensar a escola de um jeito diferente.
Mais
dinheiro para a educação
O
Brasil precisa investir melhor o dinheiro que destina à educação. Mas também é
preciso investir mais. O piso nacional dos professores que ensinam o bê-a-bá é
de R$ 1.560. É o pior salário do país, entre as carreiras de nível superior.
Hoje, eles recebem em média apenas 59% do que ganham outros profissionais com
faculdade.
"O
salário e o plano de carreira são primordiais. Estamos perdendo
educadores", diz Jamil Cury, professor da pós-graduação em educação da
PUC-MG. O Plano Nacional de Educação, em discussão no Senado, exige que se
invista 7% do PIB nos próximos cinco anos e 10% até o fim da década. Seria um
bom reforço para diminuir a diferença de investimento por aluno que existe
entre o Brasil e países mais desenvolvidos.
Sem
dinheiro
Um único
estudante americano recebe o mesmo investimento que 4,4 brasileiros.
Investimentos
em educação por aluno
1º
Luxemburgo - US$ 19.964
2º
Noruega - US$ 13.066
3º
Estados Unidos - US$ 11.859
29º
Brasil - US$ 2.653
30º
México - US$ 2.278
31º
Turquia - US$ 2.008
Nenhum comentário:
Postar um comentário