Sistemas físicos: Formalismo e Interpretação
Profº Adalberto Tripicchio MD PhD
Ainda que estejamos seguros do conceito intuitivo que se
tem de um sistema físico, convém buscarmos uma definição precisa, pois de sua
análise surgirão alguns elementos importantes. Deixando para mais adiante a
questão da existência ou não de um mundo externo à nossa consciência e supondo
que algo externo a nós, ao que chamamos "realidade", existe, pode-se
definir o sistema físico como uma abstração da realidade que se faz ao
selecionar da mesma alguns observáveis relevantes. O sistema físico está
composto, então, por um conjunto de observáveis que se elegem em forma algo
arbitrária.
Um exemplo desta definição. Tomemos uma pedra. A simples
observação revela que a realidade da pedra é complexa: possui uma forma
própria; sua superfície tem uma textura particular; seu peso nos indica uma quantidade
de matéria; notamos que sua temperatura depende de sua recente interação com
seu meio ambiente; pode estar posicionada em diferentes lugares e mover-se e
girar com diferentes velocidades; sua composição química é muito ampla,
contendo um grande número de elementos, entre os quais o silício é o mais
abundante; uma análise microscópica revelará que está formada por muitos
domínios pequeníssimos em cujo interior os átomos integram uma rede cristalina
regular; a pedra pode esconder algum inseto petrificado há milhares de anos;
até chegar a nossas mãos, teve uma história que lhe deixou traços; ainda que
seja altamente duvidoso, nenhuma observação ou raciocínio nos permite afirmar
com certeza que a pedra não tenha consciência de sua própria existência e por aí
vai.
Vemos que a realidade da "simples" pedra é muito
complexa, com características que dela participam, sem prioridades. Contudo,
quando um físico estuda a queda livre dos corpos e toma uma pedra como
exemplo, de toda essa complexa realidade seleciona somente sua posição e
velocidade. Assim, o físico define um sistema físico simples. As demais
características foram declaradas irrelevantes para o comportamento físico do
sistema, se bem que algumas podem ser incluídas nele segundo as necessidades.
Por exemplo, podemos incluir a forma e a rugosidade da
superfície da pedra se desejamos estudar o atrito com o ar durante a queda, mas
se supõe que a história da pedra não afetará esta ação. O exemplo apresentado
põe em evidência que é um erro identificar o sistema físico com a realidade;
nosso sistema sensitivo-sensorial nos informa rapidamente disso, porque percebemos
que a pedra é algo mais que sua posição. A percepção sensorial nos protege.
Contudo, os sistemas físicos que se estudam com a mecânica quântica não têm um
contato direto com nossos sentidos e dita proteção é desativada. Seria um
equívoco se afirmássemos que o sistema físico composto por um átomo de hidrogênio
ou um elétron abarca necessariamente a totalidade da realidade dos mesmos.
Não podemos estar seguros de não haver omitido em nossa
seleção do sistema físico alguma propriedade relevante da realidade que ainda
não tenha se manifestado ao nosso estudo ou que nunca o fará. Estas
considerações são importantes para conceber a possibilidade de certas
interpretações da mecânica quântica, onde estas propriedades, relevantes, mas
não conhecidas (ou não conhecíveis), levam o nome de "variáveis
ocultas", que trataremos mais adiante.
O conceito de "observável" que aparece na definição
de sistema físico surgirá inúmeras vezes em nossos artigos. Como o nome indica,
um observável é uma qualidade susceptível de ser observada. Mas em física é
necessário ser um pouco mais preciso: um observável é uma qualidade da
realidade à qual existe um procedimento experimental, a medição, cujo resultado
pode ser expresso por um número.
Esta definição é suficientemente ampla para abarcar a todos
os observáveis que participam nos sistemas físicos, mas exclui muitas
qualidades que em outros contextos podem ser qualificadas como observáveis. Por
exemplo, um matiz de cor em um quadro de Botticelli é "observável"
porque existem formas de caracterizá-Io mediante certos números, tais como as
intensidades e freqüências de luz absorvida ou refletida, mas a beleza do
"Nascimento da Primavera" de Botticelli não seria observável. O som
que surge de um violino Stradivarius é observável no sentido do físico, mas a
emoção que este som transmite não o é.
É o que se chama em Filosofia da Mente de
"qualia". Isso não significa que o físico seja insensível à beleza ou
que não sinta emoções. Ao contrário, é possível demonstrar que justamente a
busca de beleza e harmonia foi um dos principais motores na geração de novos
conhecimentos na história da física. R. Feynman nos lembra que pode haver tanta
beleza na descrição que um físico faz das reações nucleares no Sol como a que
há na descrição que um poeta faz do pôr-do-Sol.
Os observáveis de um sistema físico serão designados neste
escrito por uma letra A, B etc. Consideremos um observável qualquer A e
suponhamos que se realizou o experimento correspondente para observá-Io, o qual
teve como resultado um número que designamos por a. O observável A tem
assinalado o valor a, evento que será simbolizado por A = a, e que será
denominado uma "propriedade do sistema".
Tomemos, por exemplo, uma partícula que se move ao longo de
uma reta (alguém caminhando pela rua). Para este sistema físico simples, a
posição relativa a algum ponto eleito como referência é um observável que podemos
designar com X. Uma propriedade deste sistema físico é X = 5 metros , que significa
que a posição da partícula é de 5 metros desde a origem eleita. Do mesmo modo,
se V é o observável correspondente à velocidade da partícula, uma propriedade
pode ser V = 8 metros
por segundo. O leitor pode assombrar-se de que se necessite tanta precisão para
dizer coisas mais ou menos triviais como que a posição é tal e que a velocidade
é qual, mas veremos mais adiante que isto não é em vão.
Resumimos:
O sistema físico está definido por um conjunto de
observáveis A, B, C... Para cada um deles se define um conjunto de
propriedades A = a1, A = a2, A = a3... B = b1, B = b2..., que representam os
possíveis resultados da observação experimental das mesmas. Diz-se anteriormente
que o sistema físico não é mais que uma abstração da realidade e, portanto, um
e outra não devem ser confundidos. Contudo, uma das características fascinantes
da física consiste em que esta mera aproximação brinda uma perspectiva sumamente
interessante da realidade que pode ser estudada em detalhe com teorias físicas
até revelar seus segredos mais profundos. Por um lado deve-se ser modesto e
lembrar que o físico só estuda uma parte, uma perspectiva da realidade, mas,
por outro lado, pode-se estar orgulhoso do formidável avanço que este estudo
possibilitou ao conhecimento das estruturas íntimas do mundo externo à nossa
consciência do que chamamos realidade.
O estudo dos sistemas físicos se faz por meio de teorias
físicas cuja estrutura analisaremos. Mas antes vale a pena mencionar que tais
teorias permitem fazer predições sobre o comportamento dos sistemas físicos, e
que podem ser comparadas mediante experimentos feitos na realidade. Como na
história da física os experimentos nem sempre confirmaram as predições feitas
pelas teorias físicas, isto motivou modificações nas mesmas ou a inclusão de
novos observáveis nos sistemas físicos. Por sua vez, as novas teorias físicas
permitiram novas predições que requeriam novos experimentos, acelerando uma
espiral vertiginosa onde o conhecimento físico aumenta exponenciaImente.
Ao intrincado enlace entre a teoria e o experimento, onde o
conhecimento gera mais conhecimento, se alude quando se diz que o método da
física é teórico-experimental. Isto que hoje nos parece elementar não foi
sempre assim na historia, já que o método teórico-experimental começou a ser
aplicado em princípios do século XVII, nessa maravilhosa época de Kepler,
Galileu, Descartes, Pascal, Shakespeare e Cervantes, em que a cultura começou a
acelerar-se vertiginosamente.
Até então, e desde a Grécia Antiga, a física havia sido
puramente especulativa e estava tomada de argumentos teológicos e de pré-juízos
que estancaram seu avanço. Experimentos tão simples como o da queda dos corpos,
ao alcance de qualquer um, foram realizados em forma sistemática somente em
1600, rompendo o pré-julgamento intuitivo que sugere que o mais pesado cai mais
rápido. Hoje, quatro séculos depois, muita gente de elevado nível cultural
compartilha ainda esse pré-conceito. Deste fato assombroso pode-se tirar
conclusões interessantes sobre a deficiente formação em física da população e
sua incapacidade para observar o fenômeno cotidiano com uma visão de físico.
Todas as teorias físicas constam de duas partes: formalismo
e interpretação. É importante mencionar isso porque, como veremos mais adiante,
a mecânica quântica é uma teoria que tem um excelente formalismo, mas carece
de uma interpretação universalmente aceita.
Para compreender bem o significado destas partes
consideremos, por exemplo, o sistema físico correspondente ao movimento de um
corpo submetido a certas forças conhecidas. Nossa percepção sensorial nos indica
alguns conceitos básicos que participaram no sistema físico: a posição do corpo,
seu movimento ou velocidade e aceleração, a quantidade de matéria do corpo, e
também incluímos um conceito mais ou menos intuitivo do que é a força. Estes
conceitos básicos são bastante imprecisos, mas apesar disso, os combinamos em
relações conceituais que têm originalmente uma forma verbal e correspondem a
pré-juízos, intuições e observações qualitativas que se revelaram algumas
corretas e outras falsas, tais como: "para manter um corpo em movimento é
necessário lhe aplicar uma força" (falso) ou "maior força, maior
aceleração" (correto). Rapidamente se encontram as limitações que implica
uma formulação verbal destas relações conceituais: imprecisão, impossibilidade
de comprovar sua validez por meio de experimentos quantitativos, ambigüidade no
significado etc. Aparece a necessidade de formalizar, ou seja, de matematizar a
teoria.
Para isso se associa a cada conceito básico um símbolo
matemático, o qual representa os possíveis valores numéricos que lhe assinalam
segundo o resultado de um procedimento experimental de medição. Por exemplo, à
quantidade de matéria se assinala o símbolo m cujo valor se obtém com uma balança
comparando o corpo em questão com outros corpos definidos convencionalmente
como padrões de medida.
Com estes símbolos, as relações conceituais se transformam
em equações matemáticas que podem ser manipuladas com o formidável aparato
matemático à nossa disposição. Estas manipulações sugerem a criação de novos
conceitos, compostos a partir dos conceitos básicos, para interpretar as novas
equações obtidas.
A teoria adquiriu um formalismo. Em nosso exemplo, massa,
posição, velocidade, aceleração e força, são representadas por m, x, v, a, f,
respectivamente, e relacionadas entre si por equações do tipo f = ma. Nestas
equações aparecem a miúdo as quantidades mv e mv2/2, o que sugere
interpretá-las consignando-lhes o conceito de impulso e energia cinética. Em
uma direção, os conceitos são formalizados quando lhes assinalamos um símbolo
matemático, e, em outra, os símbolos matemáticos são interpretados ao
assinalar-lhes um significado que corresponde a alguma característica do
sistema físico. O conjunto formado pelos símbolos e as relações matemáticas que
os combinam constitui o formalismo da teoria, e os conceitos que lhe dão
significado a todos os símbolos são a interpretação da mesma.
Interpretação
Conceitos básicos
Conceitos básicos
Conceitos
compostos
Significados
de símbolos
Relações
conceituais
Formalismo
Símbolos matemáticos
Estruturas
Equações
Relações matemáticas
Equações
Relações matemáticas
A mecânica quântica ocupa um lugar único na história da
física por ter um formalismo perfeitamente definido e vitorioso para predizer
o comportamento de sistemas físicos tão variados como partículas elementares,
núcleos, átomos, moléculas, sólidos cristalinos, semicondutores e
supercondutores etc., mas, apesar dos sérios esforços feitos durante mais de
meio século por cientistas de indubitável capacidade tais como Bohr,
Heisenberg, Einstein, Planck, De Broglie, Schrödinger e muitos outros, não se
conseguiu ainda que todos os símbolos que aparecem no formalismo tenham uma
interpretação sem ambigüidades e sejam universalmente aceitas pela comunidade
científica. Veremos alguns aspectos do formalismo da mecânica quântica e os
graves problemas de interpretação que a acusam. Como exemplo do êxito deste
formalismo para predizer os resultados experimentais, mencionemos aqui seu
grande feito.
A mecânica quântica, em uma versão relativista chamada
eletrodinâmica quântica, permite calcular o momento magnético do elétron com a
precisão suficiente para confirmar o valor experimental dado por µ =
1.001159652193 µB. A incerteza experimental é de 10 nas duas últimas cifras. O
elétron pode ser considerado como um pequeníssimo imã, sendo o momento
magnético o observável associado a essa propriedade, e ao que se mede nas
unidades expressas por µB , o magneto de Bohr.
Para ilustrar a assombrosa precisão no valor teórico e experimental
do momento magnético do elétron, consideremos que o mesmo é conhecido com um
erro de uma parte em 1010, ou seja, 1 em 10.000 milhões.
Nenhuma teoria na história da ciência foi confirmada com tal precisão
numérica. Contudo, apesar deste êxito, a mecânica quântica não pode
considerar-se como definitivamente satisfatória enquanto dela não se obtiver
uma interpretação que permita compreender todas as partes essenciais de seu
formalismo. Seguramente está se realizando algo de bom, mas não se sabe bem o
que é.
Continua na aula 3
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