Física Quântica: para que e para quem
Profº Adalberto Tripicchio MD PhD
Começando pelo público, lembremos que divulgação significa
transmissão de certo conhecimento que pretenda alcançar a todos, sem restrição
alguma. Tentando neutralizar ao máximo meu núcleo narcísico-onipotente, é
minha intenção respeitar esse significado com uma única salva-guarda: ao longo
do trabalho nesta minha seção, dirijo-me aos "filo-sofos", assim
escrito para ressaltar o étimo da palavra: amantes do conhecimento.
É evidente que esses não sejam necessariamente filósofos,
pois para ler estes artigos não se requer nenhum conhecimento de filosofia.
Tampouco algum conhecimento de física, além dos ditados pelo sentido comum, ministrados
no Ensino Médio, e farei um esforço didático para evitar o jargão da física que
lhe permite a matemática.
lhe permite a matemática.
Assim, não peço ao leitor nem física nem matemática nem
filosofia, mas sim, tão somente uma atitude aberta frente ao conhecimento, uma curiosidade,
um chamado a penetrar no fascinante mundo da física quântica, ainda que isto
signifique abandonar algumas idéias cuja validade nunca se tenha questionado.
Em síntese, só peço amor ao conhecimento.
Na elaboração desta Introdução à Física Quântica de
divulgação levei em conta fundamentalmente ao eventual leitor sem conhecimentos
de mecânica quântica. Contudo, os leitores com conhecimentos, mesmo os
especialistas, não foram esquecidos, e podem, também, encontrar nesta leitura
algo que lhes seja enriquecedor porque trato alguns temas que são quase sempre
ignorados no ensino curricular convencional da mecânica quântica.
A mecânica quântica possui um excelente formalismo, cujas
predições têm sido verificadas experimentalmente com surpreendente precisão,
porém falta-lhe uma interpretação satisfatória. Não se sabe o que significam
exatamente todos os símbolos que aparecem neste formalismo. Esta situação, é
ilustrada sem exagero pelo Nobel, R. Feynman ao dizer que "ninguém entende
a mecânica quântica". Isto se refere ao fato de que os livros-texto, com
algumas exceções, deixam de lado os aspectos conceituais que buscam a interpretação
para esta teoria.
Retomando o título inicial: Para que física quântica? Por
que considero importante que uma parte significativa da população tenha algum
conhecimento da física quântica?
São perguntas de se esperar encontrar, pois a mesma estuda
sistemas físicos que estão muito distantes de nossa percepção
sensitivo-sensorial. Por isso mesmo, o comportamento de tais sistemas não
intervêm, ao menos diretamente, nos procedimentos diários dos nossos atos. Para
justificar a ciência básica e sua divulgação recorre-se com freqüência às suas
conseqüências tecnológicas. No caso da mecânica quântica, a lista é enorme.
A mecânica quântica permitiu o desenvolvimento de
materiais semicondutores para a fabricação de componentes eletrônicos cada vez
menores e mais eficazes, usados em computação. Ela permitiu um melhor conhecimento
do núcleo dos átomos abrindo o campo para múltiplas aplicações em medicina e
geração de energia elétrica. A mecânica quântica permitiu conhecer melhor o
comportamento dos átomos e moléculas, fato de enorme importância para a química.
As futuras aplicações da supercondutividade, fenômeno cujo estudo é impossível
sem a mecânica quântica, estão além de toda imaginação.
Assim podemos continuar falando sobre esta ciência básica
por suas conseqüências tecnológicas e justificar sua divulgação mostrando a
todos que devem conhecer tão grande conquista. Mas, tomemos cuidado, as
excelentes ferramentas que daí surgem não tornam o ser humano mais feliz e mais
livre. É só lembrar de Chernobyl, Seveso. Não é necessário mencionar a
monstruosa estupidez das armas químicas, nucleares e convencionais, para pôr
em dúvida se a tecnologia gerada pela ciência tem sido boa para a humanidade.
Não é minha intenção analisar se a ciência básica é ou não
responsável pelas conseqüências da tecnologia que gerou. Basta mencionar que a
tecnologia não é uma boa justificativa para a ciência, pois os mesmos
argumentos que pretendem demonstrar que é "boa" podem utilizar-se
para provar o contrário. Considero que pretender justificar a ciência básica é
um falso problema desde que a ciência não pode não-existir; surge de uma
curiosidade intrínseca ao ser humano. Justificar algo significa expor os
motivos pelos quais se tomaram as decisões para criar ou gerar o que se está
justificando. Não se pode justificar a ciência, porque esta não surge de um ato
volitivo no qual se decide criá-la, mas aparece como a manifestação social
indiscutível de uma característica individual do ser humano.
É evidentemente certo que a ciência pode ser desenvolvida
com maior ou menor intensidade mediante a alocação de recursos à educação e
pesquisa, mas sua criação ou sua destruição requereriam a criação ou
destruição da curiosidade e do próprio pensamento humano. Nós não temos a
liberdade de não pensar, algo necessário para que a ciência não exista. Por
isto, as tentativas do poder público em opor-se à ciência quando esta contradiz
o status quo fracassaram em sua meta principal de aniquilar o
conhecimento, ainda que tenham produzido danos freando seu desenvolvimento.
A mecânica quântica é uma das grandes revoluções intelectuais
que não se limita a um maior conhecimento das leis naturais. Um conhecimento
básico desta revolução deveria formar parte da bagagem cultural da população da
mesma forma que a psicologia, a sociologia ou a literatura; e isto não somente
por razões de curiosidade ou de cultura geral, mas também, porque este
conhecimento pode ter repercussões imensas em outros setores da atividade
intelectual.
De fato, um fenômeno fascinante da historia da cultura é
que as revoluções culturais e as linhas de pensamento têm seus paralelos em diferentes
aspectos da cultura. Existem semelhanças estruturais entre as revoluções
artísticas, científicas e filosóficas. Por exemplo, Richard Wagner libera a composição
musical dos sistemas de referência representados pelas escalas, da mesma forma
que Einstein libera as leis naturais dos sistemas de referência espaciais.
A teoria de campos quânticos é filosoficamente
materialista ao estabelecer que as forças e interações não são outra coisa que
o intercâmbio de partículas. O estruturalismo dos antropólogos e lingüistas não
é outra coisa que a teoria de grupos dos matemáticos, que também fez furor na
física dos anos sessenta e setenta. A música de Anton Webern poderia ser
chamada música quântica. Se bem que seja improvável uma causalidade direta entre
estas idéias e movimentos, é difícil crer que as semelhanças se devam
exclusivamente ao acaso. Qualquer que seja o motivo para estas correlações, o
conhecimento da revolução quântica, que está em andamento, pode revelar
aspectos e estruturas ocultos em outros terrenos do lastro cultural.
Uma conseqüência interessante de divulgar a mecânica
quântica é a de conectar o ser humano com sua história atual. Talvez ignoremos
as principais características do momento histórico que estamos vivendo porque
se encontram veladas pelas múltiplas questões cotidianas que preenchem os
espaços dos meios de difusão. Quando hoje pensamos na Idade Média, imaginamos
seus elementos característicos, as catedrais góticas, as cruzadas e outros
fatos diferenciais. O Renascimento nos lembra o colorido da pintura italiana da
época. A história barroca está gravada pelas fugas de Bach.
Contudo, o homem que viveu em tais períodos históricos,
seguramente, não era consciente da pintura do Renascimento nem da música
barroca. Provavelmente estava preocupado com a colheita deste ano, ou se seu
cavalo ficou atolado no barro, ou pelo perigo de conflito entre o príncipe de
seu condado e o do vizinho, ou pelos bandidos que se escondiam no bosque.
Ninguém sabe com certeza quais serão as características
determinantes de nossa época. Sem dúvida, não serão as notícias que aparecem
todos os dias nos noticiários. Mas podemos afirmar que a ciência será uma
delas e, entre as ciências, a mecânica quântica tomará um papel importante já
que sobram dados que indicam a nova revolução quântica que se está perfilando.
Esta divulgação pretende, então, conectar o homem contemporâneo com algo que o
futuro assinalará como um evento característico da historia que estamos
construindo.
Talvez a motivação mais importante para divulgar a teoria
quântica seja o prazer estético que brinda o conhecimento em si, sem
justificativas. Essa necessidade que temos de aprender e compreender. Essa
curiosidade científica que está na base de todo conhecimento. O amor ao
conhecimento é, sem dúvida, a motivação fundamental.
A meta principal que se quer alcançar com estes artigos é a
divulgação da mecânica quântica. Embora, nela participem conceitos que foram
herdados da mecânica clássica e, ainda que ambas se contradigam no essencial,
compartilham muitas estruturas matemáticas e conceitos. É por isto que o leitor
encontrará aqui numerosas idéias e conceitos que se originam da física clássica,
mas que serão necessários para uma apresentação compreensível da mecânica
quântica. Existem numerosos livros de divulgação da física quântica de variada
qualidade.
Minha seção pretende diferenciar-se de todos eles por não
assumir um enfoque histórico do tema, apresentando de forma compreensível os
conceitos atuais, sem adentrar os tortuosos caminhos que levaram ao
conhecimento que hoje se tem do fenômeno quântico. Tal enfoque é vantajoso
porque, contrariamente ao que acontece com a teoria da relatividade de
Einstein, a história da mecânica quântica ainda não acabou. Ao longo de seu
desenvolvimento, a física quântica penetrou em vários becos sem saída e em caminhos
pantanosos sem meta certa que lhe deixaram numerosos conceitos pouco claros. A
não existência de uma interpretação universalmente aceita, apesar das
formidáveis conquistas de seu formalismo, indica que a física quântica está
ainda em ebulição.
A decisão de dar um enfoque conceitual e não histórico,
permite excluir longos discursos. Seja sobre ondas e partículas, radiação do
corpo negro, átomo de Bohr, funções de ondas, difração de matéria. Tais temas
são comuns a todos os livros de divulgação com enfoque histórico, que em certo
sentido, pode ser considerado como complementar ao nosso.
Nosso plano é começar definindo o sistema físico, motivo de
estudo de toda teoria física, podendo-se ver a estrutura geral das mesmas: o
formalismo e a interpretação.
O comportamento dos sistemas quânticos é difícil de se
compreender ao pretendermos fazê-lo baseados em nossa intuição. No confronto
entre a mecânica quântica e a intuição se apresentam duas alternativas: (1)
ou, abandonamos a teoria quântica, (2) ou, educamos e modificamos nossa
intuição.
Evidentemente elegemos a segunda. Por este motivo, depois
de haver apresentado as observações básicas dos sistemas físicos e de
classificá-los, se dará ênfase em preparar o leitor, em um terceiro momento,
para que possa pôr em dúvida a sua acostumada infalibilidade da intuição.
Vencida esta meta, poderá apreciar a beleza escondida no comportamento dos
sistemas quânticos e gozará da vertigem que produzem as ousadas idéias que
aparecem na teoria quântica.
Um prêmio Nobel em física expressou certa vez estar vivendo
uma época fascinante da história da cultura porque um questionamento filosófico
básico poderia hoje ser resolvido em um laboratório de física. Outro físico
batizou com a denominação de "filosofia experimental" para se referir
a tais experimentos.
Possivelmente estas afirmações sejam algo exageradas pelo
entusiasmo, mas é inegável que o debate da mecânica quântica e certos debates
filosóficos tenham se fundido desta vez no terreno da física e não, como antes,
no da filosofia. Por este motivo veremos, também, os conceitos filosóficos
relevantes para a teoria quântica.
Continua na aula 2
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